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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Aláfia, para além da “África teórica”

ALFIA-~1

Renan Perobelli

Uma banda que carrega em sua música influências e referências políticas, sociais e religiosas, fazendo um enfrentamento ao racismo e trazendo um continente ancestral ao palco

29/01/2014

Por Igor Carvalho,

Da Revista Fórum

Eles poderiam ser personagens centrais da profecia do poeta Walner Danziger, no ótimo e importante poema “Eles não usam black power”, que usa de ironia ao apresentar a figura estigmatizada do negro como “macaco” para narrar a tomada de poder pelo povo de Zumbi. Quando pisam no palco e principiam a bater uma palma da mão na outra, ritmando o início de sua revolução particular, a banda Aláfia “borra de sangue a toalha de linho em desalinho”, como escreveu Danziger. No palco, o grupo está acompanhado pelos seus ancestrais, que ajudam a formar o ideal “alafiano”, sempre se esquivando do que chamam de “África teórica”, ou o folclore que torna a cultura africana um produto exótico, a ser consumido. “É uma apropriação sem modismo”, explica Alysson Bruno, um dos integrantes da trupe.

Em cada apresentação, também estão presentes os Douglas e Amarildos, as vítimas dos “tiros acidentais” e do “genocídio da população negra no Brasil”. “Essas últimas notícias de 30 mil negros assassinados, esses levantamentos, isso é igual ao Carandiru, 111 mortos. Foi muito mais. Mas, muito maior que o número é o medo, o terror, o temor que a gente tem da polícia. Isso tá no nosso dia a dia”, afirma Eduardo Brechó, que compõe o trio de vocais do Aláfia com a “libélula de Ébano” Xênia França e o teatral Jairo Pereira. Ao todo, são dez músicos: Pipo Pegoraro (guitarra), Alysson Bruno (percussão), Gil Duarte (trombone), Gabriel Catanzaro (baixo), Henrique Gomide (piano), Lucas Cirillo (gaita) e Filipe Vedolim (bateria), além dos vocalistas.

A banda existe há três anos, porém, o primeiro disco, Aláfia(YB Music) veio recentemente. O lançamento foi no Sesc Pompeia, em São Paulo, em 10 de setembro de 2013. Os ingressos se esgotaram e muita gente ficou do lado de fora, sem conseguir ver a apresentação. O sucesso se ampara no trabalho realizado pelo grupo, que antes de lançar o disco já havia se apresentado em diversos lugares, conquistando ouvintes que aguardavam o resultado daquela “conspiração”.

No estatuto do grupo, desde o princípio, ficaram claros os pilares ideológicos que norteariam sua atuação, como a preocupação com os elementos africanos. “A gente gosta de algo do tipo: ‘Tá vendo esse congo de ouro que tá nesse pancadão’. Mas o congo de ouro não apareceu no Google, ele vem da nossa vivência. A luta racial carece da afirmação racial, mas para longe dessa África teórica, sem esse olhar idealizado”, afirma Brechó. E o zelo com questões sociais passa diretamente pela discussão a respeito da violência policial, como explica um dos vocalistas e fundadores da banda, Brechó. “A gente é a favor da desmilitarização, mas não é só falar que a gente é a favor disso. A gente é contra a Polícia Militar, certo? Assim como eles são contra a gente, naturalmente. Quando eu era adolescente, jovem, a polícia era contra a gente sem eu nem saber qual era a situação.”

A religião, assim como o preconceito, também são temáticas constantes da obra do Aláfia. “Nosso combate não é à intolerância religiosa, é ao racismo. Porque o que demoniza a nossa religião é o racismo. É diferente se houver um sacrifício, como Jesus foi sacrificado, feito pela ‘religião branca’, um modo meio escroto de falar, mas que remete aos termos de poder que mantêm essa religião no Brasil”, sentencia Jairo Pereira.

A fusão dos elementos históricos, religiosos, políticos e sociais com a musicalidade que respeita a tradição da música negra, unindo os batuques dos tambores do candomblé, o jazz, o funk, o hip-hop e o soul criou uma estética musical que ainda fará muito crítico e articulista se perder. A direção do show é de Estrela D’Alva, e quem sempre aparece nos espetáculos são os poetas Akins Kinte e Lews Barbosa, que, ao lado de Lurdez da Luz, participam do disco.

Jairo Pereira assina a erotizada “Chicabum”. As outras nove músicas do disco são de autoria de Eduardo Brechó, sozinho ou com a participação de outros, entre elas, “Mulher da costa”, que abre o CD. Na música, a mulher da costa, que “vem do Gana, não se engana” e “diverge de [Pierre] Verger” (etnólogo francês que estudou a África em diversos aspectos), pergunta: “Quem pratica a África?”. O Aláfia usa a canção também para questionar a aplicação da Lei no 10.639 no Brasil, que trata do ensino da cultura africana nas escolas. Confira a entrevista abaixo.

Fórum – De onde vocês são?

Eduardo Brechó – Aqui tem migrante pra caramba. Sou de Ribeirão Preto, o Jairo é de Suzano, a Xênia é baiana, o Pipo é do Rio Pequeno [bairro da zona oeste de São Paulo], o Gil é cearense, o Cirillo é da zona sul, Gabiru é da Lapa [zona oeste paulistana] e o Fernando é de São Miguel [zona leste de São Paulo], o Alysson também é da zona sul. Tudo migrante, ninguém é do centro.

Fórum – E essa conexão com a periferia e os movimentos culturais e sociais de São Paulo, vem de onde?

Eduardo Brechó – Acho que tem a ver com a formação. Não somos exatamente de uma quebrada específica, mas estamos ligados na cultura das quebradas, que colabora para a construção da identidade desse indivíduo que é o Aláfia.

Fórum – O que significa Aláfia?

Eduardo Brechó – Significa caminhos abertos.

Alysson Bruno – A gente pode dizer, usando o nome de uma outra música nossa, que é quando o destino está em punga a favor do desejo. Isso é Aláfia, uma palavra de confirmação, significa “vai dar certo”. Plenitude.

Fórum – A banda tem três anos, e o disco foi lançado há dois meses. Muita gente já se perdeu ou está se perdendo tentando identificar o que é o som do Aláfia?

–  Sim! [Coro]
Eduardo Brechó – Identificar todo mundo identifica, mas não classificam. Identificação é a coisa mais fácil no som do Aláfia, porque temos referências inúmeras. Então, as pessoas identificam coisas diferentes ali, é um triunfo pra gente.

Fórum – Mas vocês tentam classificar?

Pipo Pegoraro – Acho que não. Não precisa, né? A gente não tenta classificar porque isso acaba reduzindo. As pessoas perguntam qual é o gênero, mas você tenta se explicar e dar uma definição, e depois ficamos pensando: “não tem nada a ver o que eu falei”. Ou então faltou isso ou aquilo.

Jairo Pereira – A definição mais legal é de uma reportagem numa rádio inglesa e o cara falou “funk candomblé”. No fim das contas, tem reggae, afrobeat, funk, soul. Tem tudo, tem regional…

Fórum – E novas tecnologias ajudaram também a difundir o nome da Aláfia nas redes.

Eduardo Brechó – Sim. O primeiro show do Aláfia no “Bar B” [10 de novembro de 2011] se deu por isso. A gente nem existia. Não existia um show, não éramos uma banda que se apresentava. A gente divulgou pra caramba esse show nas redes sociais. Sabiam que a gente estava conspirando e que queríamos algo. Divulgamos em um mês, e o show foi cheio. A partir daquilo, a gente continua trampando nas redes, funcionou. Aquele show virou uma temporada, e nessa temporada veio o ímpeto de gravar um disco. No mesmo ano em que a gente se uniu, já partimos para gravar o disco.

Fórum – E vocês já tinham as canções?

Eduardo Brechó – Já. Quer dizer, mais ou menos. A gente trampava em algumas dessas reuniões que fazíamos no início, às quartas-feiras, e aí fomos fazendo outras e formando o repertório do Aláfia. Já tinha um apanhado de canções, fomos nos entendendo como banda, né? O caminho fez a gente também. Naquele momento, fomos fazendo música para interpretar nossa sonoridade. Muitas canções que a gente acreditava na época não entraram para o repertório porque a sonoridade da banda passou a ser outra, e começamos a pensar nas músicas a partir dessa sonoridade, e não ao contrário. A música tem que servir para o que é o Aláfia ou para o que o Aláfia está atingindo. Foi assim que a gente montou o repertório.

Fórum – Vocês já estão identificando o público?

Eduardo Brechó – Estava conversando isso com o Pipo ontem. Você ouviu na casa do Sérgio Vaz e isso é emblemático. Existe um movimento de consumo na quebrada hoje que está buscando novos ares também, entendeu? Além disso, a gente consegue dialogar legal com essa galera que está olhando para a ancestralidade e para as lutas raciais, porque olhamos para isso também. Isso está no estatuto do Aláfia desde que foi fundado. Mas qual medida isso ia tomar, com quem a gente ia se comunicar, nós não sabíamos exatamente.

O Aláfia se vale muito disso, e a gente retribui à nossa medida. Está formando um circuito de cooperação. Se você pegar, por exemplo, o som do Ba Kimbuta tem a ver com a gente também. E não é uma coisa que a gente trampou junto, mas o laboratório é a rua, e as ideias estão ali. Há várias expressões de periferia, e se você frequenta sarau, vê a molecada de 17 ou 16 anos fazendo rap do jeito deles, vê o jeito que soltam o refrão e falam coisas diferentes, se colocar um tambor, isso influencia. É uma expressão do nosso tempo também, tem a ver com a contemporaneidade.

Xênia França – Mas isso desde sempre também. Desde o primeiro show no “Bar B”, as temporadas são sempre cheias, e com esse público que ele tá falando, né? A galera que se identifica com essas questões raciais. Ontem fizemos um show que foi o maior até agora, lá no Anhangabaú, e as pessoas estavam lá, saíram de casa para nos ver. Tinha gente que nunca tinha ouvido falar da gente, mas tinha uma galera que só foi lá ver a gente. Tinha gente cantando nossas músicas.

Fórum – Vocês falaram da ancestralidade, mas mesmo com essa condição de não se classificar, uma coisa é certa: o elemento negro e africano está ali no palco. O quanto há de influência da música negra no som que o Aláfia faz?

Eduardo Brechó – Cara, em termos de influência, pessoalmente acho que cada um traz a sua. A África é só teórica, está aí na sua camiseta. Então, cada um vai trazer a sua África, porque a gente não acredita nela nesse sentido. Tipo, o que é a África pra você? O que é o idealismo em relação a isso? Um folclore, né? Tem um folclore envolvido, e a gente sabe que a galera está mais envolvida com ele. E o mundo é muito grande. Seis mil anos que a gente cita não é nada. Como diria o Rei do Camarote, é de 6 mil anos ao infinito [risos]. Pensamos profundamente, metafisicamente e sem medo essas questões raciais. Datamos a nossa ancestralidade à medida que ela aparece, não força a barra.

Xênia França – É da maneira que se vivencia.

Eduardo Brechó – É isso. A gente gosta de algo do tipo: “Tá vendo esse congo de ouro que tá nesse pancadão”. Mas o congo de ouro não apareceu no Google, ele vem da nossa vivência. A luta racial carece da afirmação racial, mas para longe dessa África teórica, sem esse olhar idealizado. Muitos irmãos nossos, quando chegam na África, se surpreendem, são tratados até como brancos lá, por carregar essa África teórica. Tomamos muito cuidado com esse folclore. É luta, não é africanismo superficial.

Alysson Bruno – É uma apropriação sem modismo. Cada elemento aqui tem um fundamento, um motivo para estar na nossa música. Em cada frase, em cada rítmica, há uma coerência, não é só ser pretinho com cabelo para cima.

Fórum – No show que eu vi no Rio Verde, o Jairo Pereira falou muito sobre a Lei no 10.639, antes da música “Mulher da costa”. A música em algum momento foi pensada para a questão da lei? E qual a importância dessa lei, que não é aplicada corretamente no Brasil?

Eduardo Brechó – Compus a música quando trabalhava de educador no Museu Afro Brasil. É o seguinte, desde que a lei foi criada há 10 anos, a gente trabalha para que seja colocada em questão. Quando a luta começou, pela aplicação da lei, estávamos envolvidos. Fomos nos entendendo e sabemos que somos a favor da aplicação da lei. A gente trata de negritude na oficina que dou aqui [CEU Paz] e tenta aplicar a lei. Quem colocou isso de Lei 10.639 no meio da letra foi o Jairo.

Jairo Pereira – Fui eu, porque foi exatamente isso, quem pratica a África. A importância que tem é sobre a compreensão da nossa base para que a gente possa ascender em relação a nossa identidade, a nossa própria busca. É uma ideologia básica que tenho: é necessário mastigar informação, principalmente para as pessoas que não se alimentaram dela. E que essa informação, que foi demonizada, possa ser transformada e mostrar para as pessoas que o demonizador está errado. Isso é um trabalho de base. A Lei no 10.639 zela por isso. Mas, infelizmente, quando dão uma aula de jongo, na escola escutamos que “isso é coisa do diabo e a gente não pode ensinar isso”. Temos a nossa cultura totalmente transformada em algo maléfico há anos, e a nossa luta é dizer carinhosamente para essas pessoas: ‘Ei, presta atenção, isso te trouxe até aqui’. E temos um sistema que exige pra caralho, entendeu?

Nosso combate não é à intolerância religiosa, é ao racismo. Porque o que demoniza a nossa religião é o racismo. É diferente se houver um sacrifício, como Jesus foi sacrificado, feito pela “religião branca”, um modo meio escroto de falar, mas que remete aos termos de poder que mantêm essa religião no Brasil. Tem um exemplo de Diadema, quando fiz um trampo musicando poemas afro-brasileiros, nós montamos um livro no EJA [Educação de Jovens e Adultos] para passar esses poemas para a alfabetização. Alfabetização de gente de 50 anos, que queria estar vendo a Carminha [personagem da novela “Avenida Brasil”] em casa. Chegava lá e falava “Os tambores da noite estão te chamando”, do Max Viana, aí a pessoa falava que não podia falar a palavra “tambores” porque é do diabo. E todo mundo já comprava a ideia. Em uma sala de 30 alunos, 20 saíam quando ouviam a palavra “tambor”. Então, se a gente deixar isso desse jeito, vai ter que nascer um novo dicionário. O barato não é laico, não existe, o Brasil é religioso e o racismo está inserido nesse tipo de detalhe. Isso atrapalha a alfabetização. As características são totalmente negadas a todo tempo. Por exemplo, você vê uma mulher preta de turbante na cabeça e as pessoas ainda olham de maneira estranha e reprovam com o olhar. Ou quando não transformam isso em uma coisa exótica.

Fórum – Assim como aconteceu com Mano Brown, Emicida, e tantos outros que se propuseram a discutir a sociedade em que vivemos, vocês estão preparados para debater além da música?

Eduardo Brechó – Isso vai acontecer, sabemos. Mas não existe esse negócio de “música”. O nosso fundamento não serve para a estética política, se você não consegue definir a nossa estética, isso já vai te provocar. Isso carrega nossa postura política naturalmente. Não é um barato que é pensado, que a gente vai chegar ao lugar X e atingir não sei quem. Como acontece com Pedro Paulo [Mano Brown], são questionamentos que acontecem da gente pra gente. Não é o poder que vai vir. Isso seria um ponto muito positivo.

Jairo Pereira – Uma parada que costumo falar é a “arte de embate”. Já está inserida na arte a consciência política. Essa conexão que você tem com o mundo e com as pessoas. Essa arte de maneira transformadora já traz isso, já está na essência. Qualquer coisa que vier falar, a gente vai dar nosso posicionamento e o nosso ponto de vista em relação a isso. Não tenho a preocupação de quem eu possa incomodar. Se posso incomodar a polícia, se posso incomodar o Danilo Gentili, ou quem for. Porque quem estiver jogando contra, não está jogando a favor.

Fórum – Quero falar com vocês sobre a violência policial. Qual a postura de vocês em relação a esses tiros “acidentais”?

Jairo Pereira – Fiz uma performance na Oscar Freire que se chamava “Os Mendonças”, junto com a artista Juliana Notari, e a intenção era fazer essa denúncia do genocídio da população negra. Não adianta falar que são só os jovens. Os jovens também, mas é a população negra. Quando você fala dos jovens, você só especifica.

Fui pra lá exatamente pra fazer esses mascarados representando esse poder de opressão que já vem da família dos bandeirantes. Os Mendonças são essas famílias dos bandeirantes que ainda representam o poder. E que também é a família de André Furtado de Mendonça, que é o cara que degolou Zumbi. Foi pra dizer que isso ainda continua, a gente ainda tem os Mendonças degolando a gente. Fui pra Oscar Freire, na rua mais luxuosa do mundo. Era uma performance artística e estava na cara que era uma performance artística, pessoas com câmera filmando. Estava revendo e tem um take em que passo de olhos vendados ao lado de uma mulher, e o que a mulher faz? Ela gruda na bolsa. Fui levar o lixo pra eles, porque é o lixo que eles fazem e jogam na periferia, só jogam nos cantos. A gente foi jogar na porta deles. Sabe o que aconteceu? Eles não tinham coragem de olhar. Isso está no vídeo. As pessoas nem olhavam para os lados. E, no período que a gente esteve lá, a polícia passava toda hora e não olhava na minha cara. Isso está acontecendo, e todo mundo sabe que está acontecendo, mas são essas pessoas formadoras de opinião, que mantêm o poder, que não querem dar a cara pra isso. Essa força tem que se constituir no nosso povo, a gente tem que emergir disso. Porque isso está matando a gente.

Xênia França – Há muito tempo.

Eduardo Brechó – E não é só superficialmente falando, não. A gente é a favor da desmilitarização, mas não é só falar que é a favor disso. A gente é contra a Polícia Militar, certo? Assim como eles são contra a gente, naturalmente. E não é porque a gente começou com o Aláfia. Quando eu era adolescente, jovem, a polícia era contra a gente sem eu nem saber qual era a situação. No dia da estreia do Aláfia no Sesc Pompeia, tomei um enquadro, fui esculachado. Então, isso é latente, está acontecendo. Acontece no nosso dia a dia, e a gente não gosta. Simplesmente assim.

Não dá pra você ser feminista e casar com um machista. Não dá pra você ser negro e casar com um racista sendo consciente dessa situação. É o que acontece. Não vamos nos casar com um sistema que nos rebaixa e nos oprime. Somos conscientes disso e sabemos que a gente tem que espalhar essa informação. Essas últimas notícias de 30 mil negros assassinados, esses levantamentos, isso é igual ao Carandiru, 111 mortos. Foi muito mais. Mas muito maior que o número é o medo, o terror, o temor que a gente tem da polícia. Isso tá no nosso dia a dia.

Jairo Pereira – É exatamente por isso que precisamos da Lei no 10.639, pois ela nos deixará contar a nossa própria história, e não deixa só quem faz esses levantamentos de 30 mil contar.

Fórum – Vocês colocaram o funk no show. Queria saber de que forma vocês veem o preconceito com o funk e o melody no Pará, e tantos outros que surgem na periferia do Brasil.

Eduardo Brechó – A gente usa aguerê e congo de ouro, entendeu? Usa um monte de coisa que são ritmos que conhecemos, isso vem lá de trás, não inventamos nada, é ancestral. O funk também é essa união de elementos. Você vai no pancadão e dança música instrumental. Quanto tempo que eu não via gente dançar música instrumental no baile? O cara fica lá “tum tchatcha” [ritmo de funk] e os moleques ficam dançando, não precisa estar falando alguma coisa. Muitos dizem que a música instrumental no Brasil não faz sucesso, mas é porque não frequentam pancadão. Então, a música comunica dessa maneira ancestral. Qual era a pergunta? [risos].

Fórum – Preconceito com músicas das periferias do Brasil.

Eduardo Brechó – No lançamento da campanha “Eu pareço suspeito?”, tinha um workshop falando sobre isso. Eu e o Akins [Kintê] levamos pra Fundação Casa falando da perseguição do gênero do samba, e falando para os moleques que eram envolvidos com o funk como quem estava sendo perseguido não era o gênero, era o pessoal, é o povo, é o negro. Porque o roqueiro branco falava de suruba e usar droga e continua na garagem fazendo rock.

Alysson Bruno – Vira rei.

Eduardo Brechó – O que está sendo perseguido é o povo, e isso não é de hoje. Isso é do samba, foi com o rap, é com o forró também. Porque esse negócio de etiquetar como “brega”…

Fórum – Vou perguntar sobre uma música específica, sei que teve participação de mais gente. A música “Ela é favela”. Podemos falar dela?

Eduardo Brechó – “Ela é favela” é o seguinte: Fiz o refrão no final de um relacionamento. A outra pessoa com quem eu estava não era favela, e o fato de a nova moça ser fez toda a diferença. Música de amor, né? Na época, fiz o refrão e a primeira parte, e chamei a Lurdez [da Luz] para fazer a segunda parte.

Xênia França – Ela ficava girando, não tinha forma. E, um dia, a gente estava junto, na casa da Vila Madalena onde começamos o processo, de noite já. Aí rolou o refrão, e lá da cozinha, no café, fiz o “larárárárá” e rolou.

Eduardo Brechó – Aí a Xênia fez a parte final dessa melodia, que é a parte que ela canta. Isso é importante porque funda o Aláfia. Foi a primeira música que a gente gravou, a primeira música que lançou. Mudamos essa primeira música algumas vezes.

Fórum – Eu lia a letra de “Ela é favela” e jurava que você estava falando da favela. Vi a pipa subindo na favela.

Gabriel Catanzaro – Eu também achava na primeira vez que ouvi [risos].

Eduardo Brechó – Na verdade, coloco a vida, a vivência de favela, nessa parte da letra, detalhes que são importantes e que significam muito na luta feminina. Essa questão das mulheres pretas e faveladas, de quebrada. Como diz o Thaíde em “Brava gente”, “e quando eu digo favela não é só pros favelados”. O barato é o seguinte, falar dos detalhes pra quem não é favela também se identificar, e para as mulheres. Quando falei pra Lurdez, disse que não precisava fazer uma dedicação, falei “você vai falar de uma mulher guerreira”. E pronto. Porque não falo “eu te amo”, não é isso. Estou fazendo uma ode à pessoa e a esse espírito favela, que hoje é um adjetivo. É igual rua. “Eu sou rua”, isso é um adjetivo. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

85 ricos têm dinheiro igual a 3,57 bilhões de pobres no mundo

Luiz Flávio Gomes

Postado: Carta Maior - Créditos da foto: Lucas Braga

FF241176855A9424BB0AFFD915445CD5CA4C38C80578789283191E1B406B1BF7Essa é a conclusão do relatório Governar para as Elites, Sequestro democrático e desigualdade econômica, que a ONG Oxfam Intermón publicou em 19/01/14. A desequilibrada concentração de renda nas mãos de poucos (típica do capitalismo retrógrado, exageradamente desigual) significa menos renda per capita para cada habitante e cada família do país. Mas isso não implica automaticamente mais violência (mais homicídios). Outros fatores devem ser considerados: escolaridade (sobretudo), emprego estável ou não, perspectiva de futuro, a racionalidade ou irracionalidade da política criminal adotada, religião, tradição, existência ou não do “tabu do sangue” (ninguém pode sangrar outra pessoa) etc.

O que sabemos? Que cruzando os dados objetivos do IDH (índice de desenvolvimento humano), Coeficiente Gini (distribuição da renda familiar), renda per capita e o número de homicídios temos uma tese: quanto mais elevado o IDH e menor o Gini menos desigualdade e menos violento é o país (e vice-versa: quanto mais baixo o IDH e mais alto o Gini, mais desigualdade e mais violência existe). Como regra geral essa premissa é bastante válida. As exceções confirmam a regra.

O que essa tese aconselha ao bom governo assim como às lúcidas classes burguesas dominantes? Que o incremento (a melhora substancial) dos fatores estruturadores do IDH (escolaridade, longevidade e renda per capita) e do Gini (distribuição da renda familiar) não pode ser desconsiderado como fator preventivo da violência. É de se chamar a atenção aqui, especialmente, para a educação. No lapso temporal de uma geração a Coréia do Sul se revolucionou completamente por meio da educação massiva de qualidade. Esse é o fator preventivo mais relevante de todos. Como já dizia Beccaria, em 1764: “Finalmente, o mais seguro, porém o mais difícil meio de evitar os delitos, é aperfeiçoar a educação” (Capítulo 45, do livro Dos delitos e das penas).

Os dez países de mais alto IDH do mundo são os menos violentos (1,8 homicídios para cada 100 mil) e ainda estão dentre os menos desiguais, com exceção dos EUA. Contam, ademais, com rendimento per capita muito alto e um excelente nível de alfabetização. O mais desigual neste grupo (EUA) é precisamente um dos mais violentos (conta com quase o triplo de homicídios da média dos 47 países de maior IDH, que é de 1,8 para cada 100 mil pessoas). Isso nos conduz a concluir que não devemos nunca considerar um único fator (IDH) para medir ou prognosticar a violência.

Regional Vinhedo do Unificados comemora 50 anos de vida

Veja fotos da festa e assista vídeo com a
história de meio século de lutas, de 1964 a hoje

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Trabalhadores e trabalhadoras sindicalizadas comemoraram no domingo (26/jan/14) os 50 anos de fundação e de lutas da Regional Vinhedo do Sindicato Químicos Unificados. Cerca de 1.200 pessoas participaram da festa que contou com um almoço, show musical dançante, recreação para crianças, homenagem a aposentados que ajudaram a organizar o sindicato e exibição de um vídeo que recuperou a trajetória de lutas da Regional Vinhedo.

Edinho, dirigente da Regional Vinhedo, em sua fala no evento, destacou a importância de cada trabalhador (a) na construção do sindicato ao longo desses 50 anos. Em seguida, convidou todos os dirigentes da Regional para encerrar as homenagens e acompanhar o vídeo que conta a história dos 50 anos de luta.

Assista o vídeo

TV MOVIMENTO

  SIGA ESTE LINK – ou na imagem acima – para assistir o vídeo. Ele foi produzido pela TVMOV (TV Movimento – http://tvmovimento.tv.br/)

Presenças

A solenidade contou com as falas de companheiros que têm acompanhado e apoiado as lutas do sindicato, como Rodrigo Paixão (Psol), vereador de Vinhedo; Paulo Bufalo (Psol), vereador de Campinas e o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP).

O companheiro Índio, bancário de São Paulo e representante da Intersindical, destacou a importância do sindicato não apenas nas lutas da categoria em Vinhedo e em cada uma das regionais, mas especialmente na organização dos trabalhadores em todo o Brasil por meio da Intersindical, considerando o Unificados uma referência pelas conquistas alcançadas ao longo dos anos.

Arlei Medeiros e Givanildo Oliveira, dirigentes do Unificados, saudaram os 50 anos da Regional Vinhedo em nome das regionais Campinas e Osasco, respectivamente.

Fotos da festa

 

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SIGA ESTE LINK – ou na imagem acima – para ver fotos da festa.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O MITO DO FUSCA: Uso da desinformação pela grande imprensa

O MITO DO FUSCA: Uso da desinformação pela grande imprensa
Um senhor amedrontado, que dirigia um fusca onde estava sua família, tentou atravessar o fogo de uma barricada mas um colchão ficou preso embaixo de seu carro, sem notar o ocorrido e visivelmente atordoado, ele não desceu do carro para ver o que acontecia, ao perceber que o motorista não respondia aos alertas de que deveria sair do carro, fotógrafos e manifestantes retiram sua família salvando todos do fogo, na proximada da Praça Roosevelt, em São Paulo.
A sequência de fotos é explicativa. As manchetes dos grandes jornais e TVs anunciam, desde ontem, que o carro em chamas foi fruto de um "ataque" e "incendiado por manifestantes", o que é uma farsa, já que ninguém ateou fogo no veículo.
Via Molotov FOTO Independente

O MITO DO FUSCA

sábado, 25 de janeiro de 2014

“Rombo da previdência”: governo favorece o capital punindo os trabalhadores

Escrito por Waldemar Rossi – Postado: Correio da Cidadania

Sábado, 25 de Janeiro de 2014

x250114_previdencia_jpg_pagespeed_ic_Xm7zdqq8UpAlguns leitores do Correio da Cidadania têm reclamado de um suposto pessimismo e má vontade em relação aos governos petistas. Tenho sido acusado, em meus artigos, de nunca reconhecer os avanços obtidos nos últimos 11 anos de governo. Entretanto, é de se crer, deveríamos analisar todos os governos pela ótica da justiça social, e não dos “favores” que a parcela faminta de nosso país espera dos políticos de plantão, em troca da venda dos seus votos. O que se deveria esperar de políticos que foram eleitos pelo povo – que neles votaram na esperança das reformas de estrutura – era o cumprimento desses compromissos assumidos com toda a população durante as campanhas eleitorais, pondo em prática tais reformas, sempre prometidas, mas nunca cumpridas. Ou, pior, quando postas em prática estão sempre a favor do capital, portanto, em prejuízo do povo.

No ano de 2004, Lula se propôs a alterar, mais uma vez (FHC já havia prejudicado os trabalhadores), as normas que vigoravam na Previdência Social, em detrimento dos que dela dependem. Falava-se, como se fala ainda hoje, que a Previdência estava deficitária, sem dizer que o déficit é provocado pela criminosa sonegação praticada pelas grandes e médias empresas, sobretudo. Naquela época, Guido Mantega (hoje Ministro do Planejamento) justificava a medida dizendo que “o aposentado já não precisa de dinheiro, porque não paga condução...”, entre outras besteiras. Ou seja, tudo o que um trabalhador economizou compulsoriamente durante anos, pode agora ser-lhe roubado. Não importa se ele terá que viver na pobreza ou na miséria o que resta dos seus anos de vida. O que importa é usar o seu dinheiro para cobrir o rombo causado pela sonegação do capital. Com tal fala, tenta jogar sobre as costas dos trabalhadores a culpa e o ônus dos podres frutos da sonegação dos poderosos.

E o problema voltou à tona, nesses primeiros dias de 2014, sob o pretexto de que o “Rombo da Previdência em 2013” foi de R$ 50 bilhões. Duas observações importantes, que as percebe quem acompanha o noticiário econômico:

1 – o déficit é resultado direto dos “incentivos” fiscais feitos às montadoras, principalmente, mas a outros setores industriais também. Além da eliminação do IPI, determinou-se a mudança na contribuição previdenciária para aliviar a folha de pagamento, o que resultou em sonegação oficializada da contribuição previdenciária.

2 – E o que propõe o governo Dilma? “Rombo da Previdência cresce e governo quer apertar regras para benefícios” (*); “A Previdência busca meios para apertar as regras de concessão de auxílios-doença e invalidez” (*).

Ou seja, para atender a cobiça de maiores lucros pelas empresas e para atender às suas obrigações com os estados e municípios – estancados durante 10 anos com o dinheiro desviado para fins escusos – o governo petista, mais uma vez, quer punir quem sempre trabalhou produzindo as riquezas desse mesmo capital, por ele favorecido.

Enquanto maquina no calado das férias gerais – que param o país – e articula os meios para ferrar seu povo, o governo atende de bom grado às exigências estapafúrdias da gangue que domina a FIFA, gangue que planeja eventos mundiais para impulsionar e favorecer economicamente um sistema em vias de falência histórica. E os grandes favorecidos são a indústria da construção civil (grandes empreiteiras), as indústrias do aço, do cimento, do mobiliário, das máquinas, dos meios de transporte, além de forçar avanço das privatizações de setores estratégicos, como postos, aeroportos, ferrovias e estradas de rodagem. No bojo desses favorecimentos, entram a hotelaria e o turismo, a prostituição e a exploração sexual de crianças.

Nesse curto tempo de Copa do Mundo, alguns empregos são criados e isto será, e é, usado como publicidade de uma política eficiente. O que restará desse circo do futebol mundial? Elefantes brancos jogados às traças, desemprego em vários setores desacelerados depois da Copa e, sem dúvidas, um rastro de miséria humana.

Ao não analisar sob a ótica das reais necessidades do povo e do potencial de desenvolvimento do país, estamos legitimando mais uma farsa que compromete o futuro de inúmeras gerações e colabora para jogar, ainda mais, nosso país nas garras das “aves de rapina” que controlam e exploram a economia mundial.

Não temos o direito de permanecer cegos e calados diante dos crimes que são praticados a cada dia no Brasil. No próximo artigo, procurarei tratar de outros temas atuais e que, espero, ajudarão a melhor compreender nossa dura realidade politico-econômico-social.

(*) Estadão, 21 de janeiro de 2014 – Economia & Negócios – B1.

Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Ativistas prestam solidariedade ao povo Guarani Kaiowá

Estados do Brasil: Mato Grosso do Sul

CACIQU~1

Luana Luizy

"Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.

Deus, mesmo, se vier, que venha armado" Guimarães Rosa

17/01/2014 - Por Luana Luizy – Postado: Brasil de Fato

"Não morreremos educadamente", esse foi o slogan que levou 30 ativistas e independentes de Brasília rumo ao Mato Grosso do Sul, no último dia 6 de janeiro, com objetivo de prestar solidariedade ao povo Guarani Kaiowá. O grupo se chama "Brigada em Solidariedade aos povos Guarani Kaiowá". 

"Tivemos nas ruas no ano passado e acreditamos que a luta na cidade se soma à luta no campo", aponta Thiago Ávila, um dos participantes da brigada. O primeiro dia da viagem contou com visita na Terra Indígena (TI) de Água Bonita, localizada na periferia de Campo Grande. Na aldeia vivem atualmente os povos Terena, Guató, Kadiwéu, Guarani e Kaiowá. Apesar de terem o reconhecimento de 36 hectares no cartório, os indígenas habitam atualmente apenas 14 hectares espalhados em 62 casas.

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Ativistas ajudam na construção da casa de reza na aldeia Taquara-MS

Foto Luana Luizy

Como forma de acelerar a demarcação da terra pela Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas ocuparam mais cinco hectares." Percebemos que vários outros movimentos sociais também sofrem com a falta de reconhecimento de suas terras, mas pra mim o sofrimento é um só", afirma o cacique Nito Nelson Kaiowá.

Durante a roda de conversa na aldeia de Água Bonita, o grupo discutiu a diferença entre os conceitos de "reserva" e "aldeia".  Após a Guerra do Paraguai houve o reajuste de fronteiras e terras na região do pantanal e muitos indígenas que estavam dentro de territórios reivindicados por latifundiários foram dispersados e confinados em reservas.

Então o conceito de reserva foi criado, um espaço administrativo para retirar os indígenas de seus territórios de origem, o propósito era colonizar os indígenas, prepará-los para trabalhar nas fazendas, urbanizá-los. No Brasil o projeto foi administrado por Marechal Rondon.

Após a visita em Água Bonita, a brigada seguiu para a aldeia de Marçal de Souza, também em Campo Grande.  Habitada por indígenas da etnia Terena, a ocupação na Marçal de Souza começou em 1995, a área estava prevista para Funai construir sua sede administrativa, com o passar dos anos nada foi feito, foi aí que os indígenas decidiram ocupar a área. Hoje a aldeia conta com uma escola e um memorial de cultura indígena, a 1° cacique mulher do Brasil também vive na aldeia, dona Enir Terena.

Apesar do reconhecimento da área, os indígenas da região sofrem com falta de uma educação escolar que contemple a cultura e língua dos Terena, além da falta de acesso à moradia e saúde. "Precisamos de uma escola tradicional indígena, atendimento na saúde indígena nos órgãos como a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) mais voltada para os indígenas. Atualmente vivem 10 mil indígenas em Campo Grande, podemos colocar que aí 70% reivindicam habitação. O espaço do memorial também precisa ser mais utilizado pela comunidade", reitera Sidney de Albuquerque, jornalista Terena.

Durante a jornada, os brigadistas puderem desmitificar a visão do índio romântico e perceber que cultura é um processo dinâmico. Os indígenas dentro da cidade não deixam de ser mais ou menos índios por isso. "O homem branco come mandioca, mas ninguém vai lá e diz que ele está deixando de ser branco por comer mandioca, tradição que é herdada dos indígenas, mas quando um índio tá consumindo algum produto tecnológico todos caem em cima dele pra dizer que ele tá deixando de ser índio", comenta o jornalista Rafael Abreu.

Dourados

"A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo", vice-procuradora geral da República, Débora Duprat.

Indígenas da aldeia de Água Bonita- MS pedem
aceleração da demarcação da terra Foto: Luana Luizy

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Quem chega na cidade de Dourados logo percebe as oligarquias do campo que dominam a cidade, rodeada por usinas de álcool e campos de soja, a região parece esconder uma triste e dura realidade: O maior quadro de confinamento indígena e um dos contextos mais graves de miséria do país. A cidade também registra um dos maiores casos de violência contra os povos indígenas, além de casos de suicídio e alcoolismo.

A visita na aldeia de Jaguapiru só comprova o quadro, logo no caminho as marcas de destruição de uma pedreira dentro da terra indígena já revelam o clima desolador. "Vi que vocês tiveram exploração de uma mineradora aqui na aldeia, queria saber como isso tem afetado o cotidiano de vocês desde então?", questiona Henrique Dias participante da brigada.

"Já fomos ameaçados. Meu véio ficou surdo por causa da pedreira. A explosão é muito grande... parece que vai rachar a terra. Eu trabalhava e nunca parava, fazia meu artesanato, aprendi com minha mãe, mas agora não posso trabalhar bem, meu braço começa a formigar e preciso parar de trabalhar. Meu ‘véio’ ficou surdo, não vai ouvir mais nunca na vida dele", lamenta dona Floriza Souza da Silva Guarani Kaiowá.

Dona Floriza já sofreu um acidente devido a explosão da pedreira e afirma que foi arremessada pelo impacto. Os indígenas afirmam que as atividades da mineradora Santa Maria LTDA começou a partir de 1970, desde então ela tem provocado danos ambientais e afetado o dia-dia dos povos indígenas.

Para saber mais confira o documentário: Flor Brilhante e as Cicatrizes da Pedra

Guerreiras

O protagonismo das mulheres Guarani Kaiowá é percebido na sua autonomia. Em Dourados existe uma Associação de Mulheres Indígenas que vive de doações e oferece cursos de artesanato a indígenas. "Muitas vezes a imagem que passa lá fora é a de que o índio só quer viver de cesta básica, nós não queremos viver de cesta básica , mas queremos condições para termos nosso próprio sustento", reitera a cacique Elenir Guarani Kaiowá.

Taquara e a luta pela terra

"Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.

Deus, mesmo, se vier, que venha armado" Guimarães Rosa

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Indígenas da aldeia de Jaguapiru, em Dourados- MS
sofrem com as atividades de uma mineradora
dentro de suas terras Foto: Luana Luizy

A aldeia indígena de Taquara encontra-se a pouco mais de 10 km do município de Caarapó, no sul do estado de MS. Lá, os Guarani Kaiowá travam luta diária pelo reconhecimento de sua terra.  Em 2003, o cacique Marcos Verón foi morto brutalmente por agressores contratados por fazendeiro na região.
O monocultivo da soja e cana-de-açúcar tem provocado a especulação e degradação em cima das florestas e terras indígenas no Mato Grosso do Sul, só em 2007 a 2012 foram construídas 27 usinas de álcool no estado. A aldeia dos Guarani Kaiowá em Taquara é um caso bastante emblemático nessa questão, rodeada por canaviais, os indígenas ainda aguardam homologação da terra.

Em maio de 2013, os Guarani Kaiowá da aldeia Taquara decidiram retomar cerca de 300 hectares como meio de acelerar a regularização da área. "O ministro esteve aqui na área, mas foi priorizado a terra dos Terena. A gente não sabe como o governo vai fazer em relação ao fazendeiro. Vai demorar pra sair, enquanto isso tem os arrendatários que ficam explorando terra indígena", afirma a liderança indígena Ládio Veron, filho do cacique morto Marcos Veron.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Maranhão: sistema penitenciário entrou em colapso

Como em outros estados da União, a superlotação é um dos problemas que conformam a situação drástica do complexo penitenciário do Maranhão.

Rogério Almeida e Nonato Masson (*)

Postado Carta Maior

Sistema Penitenciario de maranhãoÉ a agenda negativa marcada por péssimos indicadores sociais, concentração de renda, seca, conflito por terra, trabalho escravo e corrupção que costuma conferir visibilidade ao estado Maranhão, um dos mais empobrecidos da União. No entanto, no ano passado, com o agravamento da crise no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, na região metropolitana de São Luís, colocou o estado no centro das atenções nacionais e internacionais, em particular pelas cenas de barbárie de decapitação de presos.
61 detentos foram mortos, sendo 59 em 2013 e dois em 2014, conforme dados oficiais. Ativistas de movimentos sociais, familiares de apenados e agentes prisionais que acompanham a situação avaliam que o número pode ser bem maior. Existem rumores de moradores adjacentes ao complexo de cemitério clandestino nos fundos da casa penal. Quando dos motins o número de mortos é subestimado, e a segurança da casa e grupos rivais otimizam a situação para “acerto de contas,” detona um funcionário público, que explica: “quando o Estado divulga 10 mortos, calcule uns 20”.
Em relatório de outubro do ano passado realizado por um coletivo de instituições sociais após uma rebelião, indica que os agentes prisionais abusaram do poder de repressão. Depoimentos dos presos denunciam que os agentes gritavam que era “Operação Carandiru”, que era para atirar para matar.
Um detento conhecido como “Irmão Idenilson” foi assassinado pelo Estado quando transportava um celular para agentes prisionais para auxiliar nas negociações na rebelião de outubro de 2013. Ele foi escolhido por não integrar nenhuma das organizações e por ser evangélico. O mesmo relato atesta que inúmeros detentos feridos à bala ficaram por vários dias sem nenhum atendimento, banho e água potável.
Desde o fim de 2013 a Força Nacional e a Tropa de Choque da Polícia Militar ocupam o complexo. A medida acentuou a tensão na casa prisional. A Força Nacional em outras ocasiões já esteve em Pedrinhas. O saldo tem sido a acentuação da coerção, com registros de tortura, conforme relatos de detentos.
Os mesmos informam que com a “militarização” de Pedrinhas a rotina tem sido marcada por tiros de balas de borracha, inclusive nas madrugadas, proibição de visitas, espancamentos, retirada de objetos das celas entre os quais os ventiladores. O que acentua o ambiente insalubre das celas. O ano novo foi inaugurado com mais mortes no presídio, truculência policial e a instituída revista diária em todas as celas.
No atual contexto o preso tem sido tratado como um “inimigo do Estado”, privado da convivência familiar e redução da integridade física e psicológica. A reação foi ataque a duas delegacias e ao transporte coletivo de São Luís. A ordem foi dada pelo Bonde dos 40, uma das facções que rivalizam no Maranhão.
O saldo foi ônibus queimados e a morte da criança de seis anos, Ana Clara, além do toque de recolher. No presídio a ordem é a execução dos das pessoas envolvidas na morte da criança. A situação disparou o gatilho de pedido de intervenção federal. A cidade vive um clima de pânico. A medida adotada pela cúpula do governo é a intensificação da violência no complexo.
Superlotação - Como em outros estados da União, a superlotação é um dos problemas que conformam a situação drástica do complexo penitenciário do Maranhão. Situação que se agrava com a morosidade da Justiça. Em Pedrinhas existem internos com mais de três anos de detenção, que nunca tiveram instrução processual.
Conforme dados de entidades da sociedade civil, dentre as quais a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) a população carcerária maranhense é uma das menores do país. São 5.417 que se acotovelam com a capacidade instalada de 2.219. Existem mais de 3 mil seres humanos além da capacidade em condições marcadas pela insalubridade, acúmulo de lixo, ratos e baratas.
As entidades avaliam que a situação inviabiliza o controle do presídio, favorece a formação de grupos rivais, e consequentemente rebeliões. Na mais sangrenta ocorrida em 2010, 18 detentos foram mortos e três decapitados.  O relatório da Renap adverte que o apogeu da crise ocorreu no dia 09 de outubro de 2013, na Casa de Detenção (Cadet), que integra o Complexo de Pedrinhas, quando 09 internos foram executados com armas de fogo, e pelo menos 20 escaparam lesionados. O estado lidera o índice de presos mortos do país.
O relatório das entidades e outros segmentos alerta ainda para a concentração de casas penais na capital, que priva o preso do contato com a família, que em ocasiões migra para o entorno do complexo.
Pedrinhas por dentro – Oito unidades integram o Complexo Penitenciário de Pedrinhas: Centro de Triagem (Velha e Nova), Centro de Detenção Provisória (CDP), Presídios São Luís I e II, Central de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ), Penitenciária de Pedrinhas (PP), a Penitenciária Feminina e a Central de Detenção (Cadet). Esta considerada a mais crítica.
A Cadet foi destruída no ano passado. A mesma é avaliada arquitetonicamente como não apropriada para abrigar presos. Apesar da avaliação o estado está reformando o prédio. Defensores dos direitos humanos ponderam tratar-se de um desperdício do recurso público e defendem a imediata implosão do prédio.
Um agente penitenciário informa que as celas não são fechadas. É comum os detentos ficarem nos corredores munidos de armas. Por ocasião de visitas íntimas, lençóis garantem a precária privacidade. Nos corredores do complexo existem grafites com a marca da organização que controla aquele pavilhão seja BD40 ou Primeiro Comando do Maranhão (PCM).
Advogados alinhados na defesa dos direitos humanos argumentam que a redução da população carcerária é a saída para a crise. O mesmo complexo abriga jovens que acabaram de ser presos acusados de terem cometido pequenos furtos, com homens maduros com sentenças às vezes acima de 30 anos. Sem falar em idosos, doentes mentais, tuberculosos, portadores do vírus HIV, entre outros casos.  
O complexo não conta com bloqueador de celular. A utilização de aparelhos faz parte da rotina dos detentos, assim como o uso de maconha.  Nos bastidores do complexo um pente de pistola Ponto 40 pode custar até R$ 10 mil, enquanto a pistola chega a ser negociada por R$ 25 mil, conta um informante.
“Facções criminosas” ou “Organizações políticas que cometem crimes”? – Primeiro Comando do Maranhão (PCM) e Bonde dos 40 rivalizam o controle dos presídios e delegacias no interior e capital. Além dessas há outras organizações menores como os Anjos da Morte (ADM), Primeiro Comando da Ilha (PCI) e o Bonde dos 300. O PCM foi fundado em 08 de novembro de 2003, o Bonde dos 40 deve ter três ou quatro anos e as outras são mais recentes. O Bonde hegemoniza o domínio em São Luís, enquanto o PCM comanda o interior do Estado.
Com a superlotação e centralização dos presos do Estado apenas em São Luís (registrando que o Maranhão a maioria da população vive no interior) gerou conflitos entre presos da capital e presos do interior, chamados de presos “da baixada”. Os presos da capital construíram o discurso de que Pedrinhas estava lotada por conta dos presos do interior, e que estes não deveriam estar ali. A situação resultou na execução de vários presos.
Os provenientes do interior pelo fato de distantes de suas famílias  e impedidos de receber visitas organizaram-se para reivindicar seus direitos, e fundaram o Primeiro Comando do Maranhão, que já completou dez anos. Em seu estatuto de 21 artigos, o artigo 4º dispõe “O comando não apoia e nem nunca vai apoiar discriminação contra qualquer preso sendo da capital e do interior, porque somos todos iguais perante o crime” e o Artigo 11 reza “A liberdade contra a opressão dentro ou fora do sistema carcerário”.
Em seu Artigo 9º determina “A disciplina serve para todos sem exceção, por isso o comando não rouba nem permite extorsão na comunidade”, apresentando para que as faltas serão sempre “severamente punidas”.
O Bonde dos 40, uma alusão à fábula de Alibabá e os 40 ladrões possui página em rede social. Num deles há mais de 3 mil “curtições”.  A logomarca destaca os números 157 uma clara referência ao artigo do Código Penal que tipifica o assalto à mão armada. O emblema faz referência às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Uma pessoa aparece ao centro de um círculo com a cabeça protegida com uma toca ninja e o escudo no ombro com as cores das FARC´s.
Em sites é fácil encontrar vídeos que fazem apologia ao grupo. Ele promove festas em bairros da periferia de São Luís controlados pela organização. Entre eles constam Bairro de Fátima, Liberdade, Vila Embratel, Portelinha, Barreto, São Francisco e Divinéia.
Preso tem medo de morrer – Aqueles que não aderem a nenhuma das organizações são os mais vulneráveis, pois ficam sem qualquer proteção dentro do sistema penitenciário. A maioria decide ingressar em uma das organizações logo nos primeiros dias após a prisão. Um jovem de pouco mais de 20 anos que cumpre pena por tráfico e associação teme pela vida. Ele esclarece que o assédio para que o detento vire “soldado” de uma das organizações é constante. A vida é moeda de troca. A pressão é menor apenas entre no pavilhão de presos evangélicos. Hoje prender mais é arregimentar a cada dia mais soldados para as organizações.
Segurança terceirizada - Três empresas terceirizadas respondem por 70% do pessoal do complexo penitenciário. As entidades alertam que a medida do governo do Maranhão é inconstitucional. Elas faturam mais que o Estado recebeu do governo federal como auxílio para a construção de novas casas penais, R$ 22 milhões. Somente em aditivo o governo maranhense paga perto de R$ 50 milhões para duas empresas, Atlântica Segurança e a VTI “Serviços, Comércio e Projetos de Modernização e Gestão Corporativa.”
Não existe estado da União onde os vícios da República se desenvolveram com tamanha desenvoltura como no Maranhão, em particular o patrimonialismo. Uma das principais empresas que fatura em Pedrinhas, a Atlântica, oficialmente tem como cacique Luiz Carlos Cantanhede Fernandes, sócio de Jorge Murad, marido da governadora. A empresa é a mesma do escândalo ocorrido há 12 anos, conhecido como Lunus, quando a PF apreendeu mais de um milhão de reais. A Lunus tem como proprietários Roseana e Murad.
Nunca na história deste país, quiçá da República, uma família desempenhou com tamanha competência a capacidade em apropriação do Estado para garantir-lhe a reprodução econômica, social e política, como a do patriarca Sarney.  Aos não iniciados no riscado, ler Honoráveis Bandidos, biografa risonha assinada pelo paraense Palmério Dória.
O Maranhão é um estado pauperizado, considerado um dos principais exportadores de tensões sociais do país. Dos 19 mortos no Massacre de Eldorado em 1996, 11 eram maranhenses. O estado lidera o número de trabalhadores libertos em situações análogas à escravidão no Amazônia e fora dela. Nos rincões da Amazônia é comum comunidades formadas a partir da migração de maranhenses, a exemplo de Anapu, na região do Xingu paraense, onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada.
Alarme vermelho da crise – Rebelião na delegacia do município de Pinheiro, em fevereiro de 2011, liderada pelo jovem José Ramiro, na época com 18 anos condenado por furto poderia ter servido como alarme vermelho sobre o quadro do sistema penal do Maranhão.
Na ocasião, Ramiro comandou uma rebelião na cidade natal do ex presidente Sarney. Seis presos tiveram a cabeça decepada.O argumento de Ramiro, preso por furto era não ser deslocado para São Luís, onde seria fatalmente executado por ser “da baixada”. Hoje ele cumpre pena em presídio federal em Rondônia.
Mais presídios – Em meio ao caos o governo Roseana Sarney promete a ampliação do número de vagas com a construção de presídios com capacidade para mais de 300 homens em cidades satélites no interior do estado, entre elas, Pinheiro, Balsas, Santa Inês e Brejo, além da ampliação de outros, um deles invadindo o território do quilombo Piratininga, no município de Bacabal. Além da construção de mais um presídio na ilha de São Luís.
Ao mesmo tempo licita a compra de 80 kg de lagostas, uma tonelada e meia de camarão, bombons e outros mimos para a residência do governo. A cesta básica da casa esta orçada em R$1 milhão, denuncia coluna da Folha de São Paulo.
Essas medidas devem agravar o quadro de tensão no sistema penitenciário. As entidades de direitos humanos defendem a criação de uma força tarefa que defina quem pode ser solto e quem já deveria estar solto, outras medidas podem ser tomadas entre as quais a prisão domiciliar ou tornozeleira eletrônica.
E argumentam que unidades prisionais com mais com capacidade acima de 100 homens são inadministráveis, quanto menor a unidade mais eficiente é o planejamento de administração. E São Luís tem muita vaga no Complexo de Pedrinhas, não precisamos de mais. É necessário uma força tarefa dos órgãos de justiça (Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) para rever todos os processos dos detentos de Pedrinhas, que estão hoje em situação desumana e sob tortura.
Manifestações da sociedade – A sociedade de São Luís hoje se movimenta para discutir a questão penitenciária e tentar construir uma saída para a crise. No bairro do Cohatrac ocorreu um debate organizado pelo Movimento Sebo no Chão, tem sido constante a reunião de jovens numa “Assembléia Popular” e 10 em janeiro o movimento “Acorda Maranhão” organizou uma passeata pelo Centro da cidade em que a pauta consta o impeachment da governadora Roseana Sarney, a desmilitarização da PM e o destencionamento do sistema carcerário. Há esperança de que melhores dias viram. Sem violência e sem cadeias!
(*) Rogério Almeida é autor de Pororoca pequena: marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de cá\ Banco da Amazônia\2013. Nonato Masson é advogado criminalista no escritório Onidayô Advocacia e membro da Rede Nacional de Advogados Populares - RENAP.

sábado, 11 de janeiro de 2014

A necessidade de novas reflexões sobre o cotidiano: por uma práxis reflexiva

Postado: Espaço Acadêmico

cotidiano

De grande mistério a fonte de saber, de lócus da sociabilidade a reino da alienação. Como uma junção de antíteses, o cotidiano, como objeto de estudo, constitui-se ao sabor do tempo e ao gosto de seu avaliador (daquele que o observa e o analisa).

Na história humana, inúmeras teorias já sondaram o tema e produziram explicações. É amplo o espectro de olhares e de pontos de referência encontrados nos detalhes, nas miudezas e nos sentidos dispersos nesse complexo objeto de estudo.

Diante das transformações histórico-sociais que fizeram brotar das entranhas de um não-objeto – a vida diária das pessoas – essa rica fonte de fenômenos, o que resta ao pensamento é interagir com os tormentos da matéria, contradizendo, ao longo das décadas, suas próprias ideias e previsões lógicas.

O cotidiano é uma construção social e, como tal, é reflexo não só da quimera ideológica que nos rodeia, mas, também, da inevitável base material que nos constitui. O cotidiano está para nós (como produto de ações diárias), antes de estar para ele mesmo (como ideia). Ou será que existe um espaço demarcado no interior da sociedade em que possamos dizer “aqui começa e ali termina o cotidiano”?

Poderia se dizer, como tentativa de resposta: “é esse dia a dia que nos rodeia”. Sim, mas e daí? Rodeia a quem? Que tipo de dia a dia é esse? Ele é constituído a partir de qual visão de mundo? É expresso como reflexo de quais modos e relações sociais? Que interesses há por traz dessa convencional noção de cotidiano? A quem é conveniente que essa concepção continue a ser o que é?

Com essa problemática, o tema ganha complexidade: o cotidiano é amplo. Apenas um estudo sobre a transformação de suas representações ou sobre as condições histórico-sociais que o fizeram surgir na qualidade de objeto de estudo já daria para encher muitos livros da área de Ciências Sociais. Isso sem considerar as diversas abordagens existentes que também ampliariam o leque de reflexões teóricas a respeito da questão.

Não se trata aqui de percorrer as linhagens do pensamento que se debruçaram sobre o assunto, nem de revirar questões epistemológicas, levantando as relações e os interesses encobertos pela racionalidade da ciência sociológica. Esse movimento de entendimento e de compreensão se inicia com a constatação, seja reflexiva, seja crítica de que o cotidiano compõe esse amplo universo de ações e de relações que os seres humanos constituem em sociedade.

Não é preciso ser sociólogo para perceber que esse mundinho diário existe e que se tem de conviver com ele. Não se pode negá-lo, isso é fato. Mas, do ponto de vista da reflexão filosófica e sociológica, por que o cotidiano é mais um inimigo do que um aliado na reflexão e nos processos transformação? Qual a relação senso comum / cotidiano, alienação / cotidiano?

Há toda uma tradição de pensamento, que nos leva aos antigos filósofos gregos e que se espalhou pelo ocidente, de negar o que está próximo, de desconfiar do que os sentidos nos dizem, enfim, de evitar as ilusões que o mundo corriqueiro nos traz (uma aparência espiritual e material). Assim sendo, pensando a realidade que nos cerca com certos pressupostos sociológicos, é preciso distância para enxergar melhor aquilo nos aparece como natural e óbvio dentro da lógica de organização social.

Dá para fazer uma analogia com a visão de uma obra de arte num museu, de um quadro, por exemplo. Quando vemos uma pintura expressionista, só conseguimos notar a grandeza do trabalho do autor ao chegarmos próximos da tela. Dali, podemos ver as cores fortes e as pinceladas, que mais parecem borrões sem sentido.

Com relação ao cotidiano, a situação se inverte, de perto vemos uma aparente harmonia, sentido, naturalidade. No entanto, ao tomarmos distância, podemos ver como estávamos equivocados. Com uma visão melhor de todo o quadro, vemos as contradições e os conflitos de interesses que antes não se faziam presentes.

Desse modo, o cotidiano pode ser visto como um mal necessário à reprodução do sistema. Reprodução no sentido ideológico da coisa, como sendo o cimento que cobre as frestas e as rachaduras estruturais, dando um ar aparente de homogeneidade. O cotidiano, então, é parte integrante, e fundamental, do processo produtivo do todo desigual.

O cotidiano se torna vilão da história quando relacionado ao grande balaio de saberes do senso comum. Na maioria das vezes, essa é quase uma ação imediata: pensou em cotidiano, pensou em senso comum; pensou em senso comum, pensou em cotidiano. E, quando se pensa em senso comum e em cotidiano, muitas associações são feitas: ilusão, alienação, falsidade, fantasia, mentira, não-científico etc.

Não quero com essa argumentação fazer crer que defendo o senso comum ou o cotidiano. Não estou advogando uma sociologia do senso comum ou do cotidiano. Muito pelo contrário. Não sei se esse binômio ciência/senso comum ainda tem sentido, prefiro sair dele. Mas, também, não quero negar veementemente um ou outro. Não defendo nem a ciência (em sua acepção clássica, positivista), nem o cotidiano (em sua representação puramente ideológica e alienadora). O importante é avaliar criticamente e dialeticamente cada um desses processos.

Assim como a ideia de ciência não é fechada e pronta, também a de cotidiano não é. Como podemos descartar alguma coisa sem conhecê-la de perto? Tomar como base essa dicotomia simples de oposição entre falso/verdadeiro, claro/escuro, ciência/mito não é deixar tudo no reino exclusivo das ideias? Alguns fenômenos necessitam de processos compreensivos que a lógica abstrata não consegue oferecer.

Tá certo, você pode dizer, “o cotidiano não é lá esse mau-caráter que acreditávamos, mas o que ele é de fato?” Ele é essa complexidade que se materializa a nossa frente; essa substância que se modifica à medida que o mundo muda. Por isso devemos criticar os conceitos. Estes seguem uma racionalidade própria e não se conectam com o universo humano de maneira dinâmica. No entanto, tal atitude não representa a negação dos conceitos. Ela quer refazer continuamente a ligação entre as transformações materiais e as ideias. E o que isso tem a ver com o cotidiano, ora bolas? A meu ver, tudo.

Penso que deveríamos perder esse preconceito arcaico de ver o cotidiano como pura alienação. Isso não quer dizer aceitá-lo acriticamente como ele é em sua manifestação ideológica, nem submeter-se a ele como fonte de uma explicação mais ampla e profunda. Falo sobre o cotidiano num sentido mais global. Não só como objeto de estudo, mas como realidade diária. O cotidiano deve fazer parte do nosso processo de reflexão diário. O contato com esse quebra-cabeça múltiplo enriquece muito a pesquisa social.

Alguns teóricos estão desbravando esse território desconhecido, mas ainda são poucos e a duras penas. Muitas pesquisas empíricas destacam aspectos que poderiam ser menosprezados por outras abordagens mais lógicas.

Mesmo no campo do trabalho, que é reduto de um pensamento fortemente crítico ao cotidiano, boas pesquisas foram feitas por historiadores que trouxeram, nos dados coletados, as minúcias e os detalhes de um universo diário em transformação. O cotidiano teve papel fundamental nessas reflexões, como é o caso da obra de Edward Palmer Thompson (1924-1993).

É lógico que também há muita pesquisa que não leva a nada e que só acrescenta dados insignificantes. No entanto, mesmo nesses, devemos não ser tão prepotentes. As pesquisas têm que correr livres com a fértil imaginação humana. Não há objeto de estudo melhor ou pior que o outro. Criar não-objetos só estimula o pensamento narcisista a seguir seu próprio caminho de adoração de si mesmo, sem encontrar obstáculos.

O pensamento lógico-abstrato não quer pensar em outra coisa, a não ser, nele mesmo. Devemos arriscar um movimento contrário a esse. As ideias devem acompanhar de perto a mudança e a dinâmica da história em seus pequenos processos; devem expressar o novo e não se submeter à repetição do sempre igual, à eternização dessa realidade antagônica.

* LEONARDO DE LUCAS DA SILVA DOMINGUES é Graduado em Ciências Sociais pela UEL e Mestre em Sociologia pela UFRGS; membro do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS/UFRGS)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O preço da velhice no Brasil (II)

Postado: Carta Maior

Na maioria dos países ocidentais a questão da aposentadoria é a grande discussão. Os aposentados de hoje fizeram um acordo social em um mundo que passou.

 

O preço da velhice no Brasil

Créditos da foto: Du Santos

Nove milhões de idosos foram incluídos na sociedade brasileira no espaço de tempo da última década. É muita coisa. Neste período, inúmeras iniciativas foram tomadas pelo estado e são bem-vindas. “Mas ainda há um descompasso entre elas e a realidade”, diz, com razão, o médico Renato Veras, especialista em envelhecimento da população, idealizador e diretor-geral da Universidade da Terceira Idade (Unati), da Uerj, com mais de dois mil alunos maiores de 60 anos de idade e com cursos para cuidadores de idosos e outros profissionais da área. Para Veras, a situação de vulnerabilidade dos mais velhos, hoje, é até mais complexa do que antes, quando eles eram praticamente invisíveis aos olhos do estado. Hoje, há menos nascimentos e as mortes são adiadas. O número de contribuintes diminui e o de beneficiários aumenta enquanto o país tem 24,85 milhões de brasileiros com mais de 50 anos de idade.

A história (real) da senhora dizendo para a filha que vai buscá-la no hospital, curada, é emblemática: “Agora está muito difícil morrer, minha filha”.

Na maioria dos países ocidentais a questão da aposentadoria é a grande discussão. Os aposentados de hoje fizeram um acordo social lá atrás, em um mundo que passou, para usufruir a aposentadoria durante seis, sete anos. Agora vivem mais vinte, trinta anos e o modelo antigo não cabe mais no corpo dessas pessoas – serviu para outro período no qual a expectativa de vida era menor.

Na França, há três anos, os aposentados foram para as ruas em massa exigindo o cumprimento de direitos que se encontravam ameaçados pelo governo neoliberal de Sarkozy. Eles invocavam as regras elaboradas quando começaram a trabalhar – naquele mesmo ambiente do qual falávamos; que não existe mais. Na Europa, os idosos, assim como os jovens, estão sendo as primeiras vítimas do desmantelamento do sistema de bem-estar social operado com empenho pelas políticas de austeridade dos governos conservadores, de direita.

Na Argentina, um dia a galinha dos ovos de ouro de alguns banqueiros deixou de botá-los para se dedicar aos idosos, como comentam, com humor, certos analistas portenhos. O governo estatizou os fundos de pensão, a medida resultou em pouco tempo em um aumento em termos reais da renda média dos aposentados e incluiu no sistema todos os idosos maiores de 65 anos - os que contribuíram ou não para o sistema previdenciário.

No Brasil, o descompasso nas aposentadorias é gritante. Acompanha a renitente desigualdade social. E se insere em uma divisão anacrônica de castas: por um lado, ao estado cabe pagar altos benefícios aos seus funcionários diretos que se aposentam (como aos militares e seus descendentes mulheres solteiras, por exemplo). Por outro, para os que se valem do INSS, os valores são achatados. Estima-se que 10% do total de aposentados recebem valores milionários. Quantos deles conseguiram chegar ao teto de  4159,00 – não se sabe.

Sabe-se, sim, que entre 17 milhões de aposentados brasileiros  220 mil pessoas recebem benefícios entre 3 000,00 e o limite. O fator previdenciário criado durante o governo neoliberal do PSDB reduziu em cerca de 30% os valores do benefício anteriormente calculado sobre dez salários mínimos - na época, R$415,90. Hoje, sem o fator, o teto seria de R$7240,00.

Naquele momento, a cantilena tinha vários tons. O primeiro: “O Brasil envelhece e não tem como sustentar os velhinhos”, como diziam ex-funcionários do Ipea na ocasião. O segundo: “É preciso flexibilizar a Previdência.” O terceiro tom, o mais desafinado, se tornou célebre: “Há velhinhos que são vagabundos”.

Alguns mantras persistem até aqui com variáveis de falsas notas – ou esperanças. Promessas alvissareiras não cumpridas foram ensaiadas na primeira campanha para presidente de Luiz Inácio Lula da Silva. O fator previdenciário, dizia-se, seria analisado e mudado (ou abolido). Até hoje ele vigora, impávido.

Mesmo aos tropeços, o idoso brasileiro, assim como a da população de baixa renda que não participava do mercado de consumo, começou a se fazer presente. Hoje, o idoso compra mais medicamentos (por força da longevidade esticada), viaja, alimenta-se melhor. No entanto, sua fragilidade foi ampliada. Há mais casos de diabetes, hipertensão, disfunções cardiovasculares, mal de Alzheimer, doenças senis e crônicas ou degenerativas próprias da velhice, como as relacionadas às articulações - artrose, artrite, osteoporose – que exigem novos gastos. No entanto, a parcela da população idosa protegida socialmente passou de 74% em 1992 para 82% em 2013.

O certo é que a partir de algum ponto, na medida em que a idade avança, o indivíduo custa mais ao estado, lembra Veras. Já a pequena classe média que deseja usufruir de uma velhice confortável, um envelhecer com qualidade, equilibra-se com sérias restrições no orçamento por conta dos altos valores dos planos de saúde privada, uma área pouco regulada e com serviços que, com freqüência, não correspondem aos preços estipulados.

Mas o quadro geral permite esperanças renovadas. Serve lembrar que saúde, bem-estar e autoestima constituem a base da vida do idoso e o leva, mais confiante, a consumir. O chamado mercado maduro surge e traz um público alvo ideal (antes ele era marginalizado) com menos inadimplência, onde o consumo é reflexivo, a rede de contatos do cliente/comprador é poderosa e há forte fidelização de marcas e serviços.

Caso o indivíduo aprecie o produto, o seu preço, o local e/ou o atendimento do serviço ele firmará o hábito e não mudará. Conservador no que diz respeito ao consumo, raramente o idoso nutre o interesse pela novidade, o que é uma característica marcante do jovem. Por isto, neste mercado maduro que tende a crescer cada vez mais e com uma rapidez que vai atropelando todas as pesquisas e expectativas, farmácias criam cartões especiais com descontos para os mais velhos; agências de viagens oferecem pacotes especiais na baixa temporada; profissões novas se expandem, como a de cuidadores e professores de educação física especialistas em exercícios para os velhos. Faculdades abrem cursos com turmas especiais – nelas o número de mulheres é esmagador. Na internet, o contingente de indivíduos a partir de 50 anos é o que apresenta, segundo a Pnad/2012, o maior percentual de internautas no país: 20,5%.

O perfil de formadores de opinião dos idosos também é uma força. Eles são influentes nos hábitos familiares e participam de decisões de compras importantes. Ter um idoso na família, no passado, muitas vezes era um fardo. Hoje, pode até ser fonte de renda porque mesmo aposentados, 35% dos homens continuam trabalhando.

“Os idosos dependentes da geração de baixo são em menor número do que o grupo daqueles que apoiam essa geração que vem atrás. Portanto, eles são menos apoiados do que apoiam os mais jovens”, registra a demógrafa Ana Amélia Camarano, coordenadora de pesquisas de População e Cidadania do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo Camarano, há um ano, “nos 11% da população brasileira idosa, 24% dela chefia os domicílios brasileiros. Um quarto desses domicílios, portanto, são chefiados por idosos. E mais: 56% da renda familiar vem do idoso em nada menos que 10 milhões de domicílios no país.”

Dados surpreendentes. Para Camarano, a associação entre dependência e envelhecimento é uma visão estática que “ignora os avanços tecnológicos, principalmente na medicina, e a ampliação da cobertura dos benefícios da seguridade social.”

Quais as soluções para assegurar uma velhice digna a todos brasileiros? Investimento maciço na população idosa com parcelas significativas do orçamento destinadas a este segmento? As entidades e as associações de aposentados precisam pressionar. Nas manifestações de junho de 2013, na tarde para a qual foram convocadas a ir para o Centro do Rio de Janeiro, era ínfima a presença de indivíduos aposentados ou em vias de descansar ou, em outros casos, de ser descartado.  

Compreende-se que idosos, pelas limitações da idade, tenham mais restrições para se fazerem presentes nas ruas. Mas nem por isso os novos velhos são invisíveis. Continuam votando, por exemplo. Mesmo não sendo obrigados ao dever do voto, constituem um eleitorado de pelos menos dez milhões de homens e mulheres.

Pena que não foram lembrados, no discurso de fim de ano da presidenta Dilma Rousseff, ao lado das minorias contempladas com o seu registro presidencial: mulheres, jovens, negros, deficientes, indígenas e quilombolas. E os idosos? Eles não continuam sendo “velhinhos vagabundos”.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

As derrotas da mídia na América Latina

As recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam as que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua. Não é para menos que o rebelde continente latino-americano é hoje maior entrave ao poder dos monopólios da mídia

02/01/2014

Por Altamiro Borges em Brasil de Fato

Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela regulação da mídia. A região conhece bem os estragos causados por uma mídia concentrada e manipuladora. Os golpes e ditaduras que infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos de impressa. O neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor. Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido Imprensa Golpistas (PIG)”. Nada mais natural, portanto, que a regulação se tornasse uma exigência democrática.
Ley de Medios da Argentina

A derrota mais sentida pelos barões da mídia no ano passado se deu na Argentina. Em outubro, finalmente a Suprema Corte do país declarou a constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram contestados pelo Grupo Clarín, principal império midiático da nação vizinha. Esta decisão histórica permitiu que o governo de Cristina Kirchner prosseguisse com a aplicação integral da nova legislação, considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de desconcentração e democratização dos meios de comunicação.
Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de “evitar a concentração da mídia”. O Grupo Clarín, maior holding multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200 outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como apelar.
Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e sancionada por Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei substitui o decreto-lei da ditadura militar. Seu processo de elaboração envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos sociais e empresários. Após a primeira versão, ela recebeu mais de duzentas emendas parlamentares. No processo de debate que agitou a Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a sua aprovação. A passeata final em Buenos Aires contou com mais de 50 mil participantes.
Mesmo assim, os barões da mídia tentaram sabotá-la, apostando suas fichas na Suprema Corte da Argentina. Isto explica porque a sentença de outubro abalou tanto os impérios midiáticos da região, reunidos na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Num discurso terrorista, eles afirmaram que a nova lei é autoritária. Mas até o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, reconheceu que a Ley de Medios da Argentina – com seus 166 artigos – é uma das mais avançadas do planeta e visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos.
Equador e Uruguai dão exemplo

A Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na região. Outros dois países deram passos significativos neste sentido em 2013. Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de Rafael Correa que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no país. O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra.
Além de criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que terá o papel de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei reserva 33% das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal, 33% para emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e comunitários. Ela também garante amplo direito de resposta, contrapondo-se ao chamado “linchamento midiático”. Caso julgue que pessoa física ou jurídica foi “caluniada e desacreditada” pela mídia, a Superintendência pode obrigar o veículo responsável a divulgar um ou mais pedidos de desculpas.
Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus 119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e na garantia da verdadeira liberdade de expressão. “Como cidadãos, queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de informação com responsabilidade... Propusemos uma lei que se constrói a partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de privilegiados”. Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por banqueiros!
Para irritar ainda mais os barões da mídia do continente, em dezembro último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de José Pepe Mujica. Com 183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os meios de comunicação como um direito humano e define que “é dever do Estado assegurar o acesso universal aos mesmos, contribuindo desta forma com liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação, promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento”.
Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”. Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no processo de concessão de autorizações e licenças para exerce a titularidade” nas emissoras de rádio e televisão. Ele também prevê a criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de “implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”.
A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões de rádio ou tevê. Ela também contempla a proteção à criança e ao adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência excessiva”. Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a exposição dos menores.
A reação da máfia midiática da SIP

As recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam as que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua. Não é para menos que o rebelde continente latino-americano é hoje maior entrave ao poder dos monopólios da mídia. Em outubro passado, durante a 69ª Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), os poderosos empresários do setor confessaram que estão perdendo a batalha de ideias na América Latina e decidiram reforçar sua postura oposicionista.
Na maior caradura, o presidente da SIP, Jaime Mantilla, disse que "os governos latino-americanos têm se dedicado a semear o ódio e o medo" contra os meios de comunicação. O objetivo da entidade, sedeada em Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre apoiou os golpes e as ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam aplicadas em sua plenitude e que contagiem outros países da região. O Brasil inclusive foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia do continente. Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles podem dormir tranquilamente.