Translate - Tradutor

Visualizações de página

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

“EUA fizeram vista grossa diante do crescimento do Estado Islâmico”, afirma pesquisador

Por: Brasil de Fato

Cientista político descreve origens do Estado Islâmico, comenta os interesses em disputa por potências mundiais na Síria e fala sobre os riscos do crescimento da islamofobia.

Por Vivian Virissimo,

Do Rio de Janeiro (RJ)

obama_esta_is_118Após os ataques do Estado Islâmico em diferentes pontos de Paris, que resultaram em mais de 150 mortes e 300 feridos, o sentimento de solidariedade ao povo francês tomaram o noticiário, as conversas e as redes sociais em todas as partes do mundo. Para entender as razões do atentado e o que está sendo disputado por potências mundiais na Síria, o Brasil de Fato entrevistou o cientista político Pedro Paulo Bocca.

Brasil de Fato – Quais as razões do ataque feito pelo Estado Islâmico ocorrido em território francês na última sexta-feira. Quais são as raízes desse conflito?

Pedro Paulo Bocca – É importante entender o processo de criação do Estado Islâmico. Ele se origina no Iraque após a invasão dos Estados Unidos. Após a queda de Saddam Hussein, começa a crescer uma disputa religiosa interna entre sunitas e xiitas, já que o governo provisório eleito com o apoio dos EUA é xiita e passa a reprimir a maioria sunita. É neste contexto que nasce o Estado Islâmico, sunita, em 2004. Os Estados Unidos fizeram vista grossa diante do crescimento do Estado Islâmico, já que isso dividia o povo iraquiano e facilitava a dominação estadunidense. É bom lembrar que o Estado Islâmico foi constituído também por uma dissidência da Al Qaeda, que eram os ditos inimigos dos EUA na época. Hoje, mais da metade do Iraque é dominado pelo grupo. Com o início da guerra civil na Síria, o Estado Islâmico viu a oportunidade de expansão de fronteira e a tomada do território sírio para consolidar seu objetivo de criar um Estado em toda a região. No início do processo, as potências ocidentais acharam esse movimento conveniente, pois eram contra o governo sírio, mas isso fugiu do controle.

O que as potências têm feito atualmente diante desse cenário?

Há dois blocos atuando hoje contra o Estado Islâmico. Um, de defesa do governo da Síria, de Bashar Al-Assad, que reúne Rússia, Irã e Líbano e que atua por terra com o objetivo de expulsar o Estado Islâmico da Síria. Por outro lado, há ações coordenados por Estados Unidos e outros membros da Otan - incluindo a França - de bombardeios aéreos. Esta coalizão, durante a guerra civil na Síria, se posicionava ao lado dos rebeldes sírios, com a proposta de derrubada de Assad.

O que teria sido o estopim para o ataque da última sexta-feira?

A França tem apresentado muita resistência ao crescimento do extremismo islâmico, especialmente após o ataque ao jornal Charlie Hebdo, no começo deste ano. Além disso, o país é identificado pelo Estado Islâmico como o principal oponente europeu porque os bombardeios ao seu território, pela coalisão da Otan, são realizados majoritariamente a partir de caças franceses. Na semana passada, a França explodiu um campo de extração de petróleo no território controlado pelo Estado Islâmico. Atualmente, o grupo extremista está numa dinâmica de criar um cenário de instabilidade e tensão como resposta aos países que o tem atacado: foram os responsáveis pela explosão de um avião russo em território egípcio que resultou em mais de 200 mortes, realizaram um atentado em Beirute, no Líbano, que deixou mais de 40 mortos, e agora os atentados em território francês.

Qual o impacto na geopolítica mundial?

A Síria é o grande nó na geopolítica mundial. Mesmo que EUA e Rússia se unam para combater o Estado Islâmico e o destruam, fica a pergunta: O que fazer com esse território depois? A Rússia não abrirá mão da manutenção do governo de Bashar Al-Assad, enquanto o plano dos Estados Unidos e das demais potências ocidentais é exatamente o contrário. A Síria cumpre um papel geopolítico e econômico fundamental para os interesses russos, e Vladimir Putin não abrirá mão de Assad. Esse pós-Estado Islâmico, caso haja de fato uma reação maior, é a grande questão. Depois dos acontecimentos sexta-feira não há nada certo.

Como o Estado Islâmico poderia ser caracterizado?

Ele é talvez a grande expressão do extremismo muçulmano que tem sido historicamente construído naquela região, fomentado pelas grandes potências ocidentais. Hamas, Al Qaeda e Boko Haran são exemplos desses movimentos islâmicos muitos radicais, os chamados jihadistas que praticam a “guerra santa”. Eles objetivam a expansão do Islã e constituição de regimes de governo islâmicos através do uso da força. É importante, porém, deixar claro que estes grupos não representam de maneira nenhuma a imensa maioria dos árabes ou dos muçulmanos, que muitas vezes acabam sendo confundidos com os extremistas. De qualquer modo, nenhum desses outros movimentos citados teve algo semelhantes às condições que o Estado Islâmico possui, ele é a expressão mais radical e mais estruturada deste processo. Sua força se dá pois conseguiram se aproveitar do momento histórico. No começo dos anos 2000 o Oriente Médio estava relativamente sob controle, com Estados fortes controlados por governos que tinham legitimidade: Saddam Hussein no Iraque, Muammar Kadafi na Líbia e Bashar Al-Assad na Síria, eram um exemplo disso. Porém, a intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque cria novamente uma instabilidade política na região, que é propícia para o desenvolvimento de organizações extremistas. Como alguns Estados foram destroçados pela intervenção estrangeira, inicialmente no início da década, e mais recentemente com a derrubada de Kadafi pela Otan e a guerra civil na Síria, aumenta ainda mais a possiblidade de se organizarem com planos maiores. Hoje o Estado Islâmico tem grandes proporções, tem influência em outros países, recruta membros inclusive em outras regiões do mundo. Isso garante uma condição de articulação e um poder muito maior. É uma organização que tem grande capacidade financeira graças ao controle de áreas que produzem petróleo e gás, distribuídos pelas monarquias árabes como a Arábia Saudita, que possui fortes relações políticas tanto com o Estado Islâmico, quanto com os Estados Unidos.

Após os ataques na França, vários países estão anunciando que vão endurecer as medidas contra os refugiados. Que repercussão isso terá?

Após os últimos acontecimentos, as intervenções no território sírio e no Iraque tendem a aumentar e isso ampliará o contingente de refugiados. Após os ataques em Paris poderá haver uma diversificação do local de imigração. Com as portas europeias ainda mais fechadas, a tendência é que os refugiados mudem de destino, pode ser que haja muitas pessoas se deslocando para outros países. Ainda que a visão da mídia dê a entender o contrário, a quantidade de sírios e iraquianos que ingressam na Europa Ocidental é pequena se comparado ao número total de cerca 11 milhões de refugiados que tiveram que sair das suas terras graças a este conflito. A Turquia, por exemplo, recebeu sozinha mais refugiados do que toda a Europa.

Que impacto terá para os refugiados que já moram em território europeu?

A França, por exemplo, já enfrentava problemas com a população islâmica no interior do país, que soma entre 8 e 9% da sua população. Mas após estes atentados, a situação dos muçulmanos franceses e os espalhados pelos demais países pode ficar ainda pior. A tendência é de fechamento da política europeia, aumento da perseguição aos árabes e crescimento do nacionalismo europeu que vai cobrar da França e de outros países da Europa ações enérgicas para o conflito. Novamente, temos que reforçar que o Estado Islâmico não representa a imensa maioria dos muçulmanos, especialmente no caso dos refugiados. Pelo contrário, quem mais sofre com a ação destes grupos é a própria população árabe. Os refugiados são refugiados porque fogem justamente desses grupos, que destruíram suas cidades, seu país e sua cultura. Existem estimativas que, só em 2015, mais de 10 mil sírios e iraquianos foram assassinados nas ofensivas do Estado Islâmico na região.

A islamofobia já era um problema na Europa. Como esse sentimento de repulsa ao islamismo tende a piorar após os ataques na última sexta?

Ao contrário de outros países europeus na França os muçulmanos não foram completamente integrados à sociedade. Enquanto na Alemanha, por exemplo, isso se deu de forma menos “traumática” com os turcos ainda no século passado, na França, a integração tem sido muito difícil, são comunidades muito guetizadas, a comunidade árabe tem uma dificuldade social, política e econômica de integração com a sociedade francesa. Daí os conflitos nos últimos anos, principalmente nas periferias de Paris. Há anos existe um clima de preconceito étnico que a direita já usava com muita força. Agora, diferente dos atentados no início do ano ao Charlie Hebdo, um órgão de imprensa, agora é um ataque à França, um ataque declarado de uma força estrangeira ao Estado francês. Até mesmo no governo francês, do Partido Socialista, que podemos considerar a centro esquerda da política francesa, cresce a cobrança por uma ação enérgica. Importante ressaltar a declaração de Obama que classificou a ação do Estado Islâmico como um ataque aos valores ocidentais. É um forte contraponto a pessoas que praticam outra religião, falam outra língua e tem outros costumes.

Como fica a situação das forças de libertação que atuam na Palestina?

Há que se ter especial cuidado no que diz respeito à confusão, que na maioria das vezes é proposital, entre os exércitos de extremistas islâmicos e os movimentos de resistência nacional-popular árabes. As forças de libertação nacional que operam na Palestina e no Curdistão, por exemplo, e os governos que não pactuam o plano ocidental para a região (notadamente Líbano, com a participação do Hezbollah, Irã e, claro, Síria) tendem a estar ameaçados por uma nova ofensiva dos países da Otan na região. É importante separar as coisas. Neste sentido, é importante aumentar a atenção na Palestina. Os levantes populares que têm acontecido nos últimos meses (muitas vezes, infelizmente, também relacionados a ações terroristas) podem e serão utilizados por Israel para legitimar uma ofensiva militar de repressão nos territórios ocupados. Essa é uma questão de imensa importância

Como avalia o posicionamento do governo Dilma Rousseff diante do atentado na França?

Tímido. O Brasil tem evitado se posicionar de maneira mais contundente sobre o conflito, não é de hoje. A política externa de Dilma é mais tímida do que a que se destacou durante os dois mandatos de Lula. No plano internacional, a Rússia tem feito pressão dentro do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para que esses países que se somem na defesa do governo sírio. O Brasil tem se esquivado de tomar uma posição clara. Inclusive recentemente votou contra o governo sírio no Conselho de Direitos Humanos da ONU, numa moção sobre supostas violações direitos humanos no governo Assad. O Brasil votou diferente de Rússia e China que pediram a anulação dessa moção. O país vinha se abstendo nesse tipo de votações. Alguns analistas apontam que esse voto contrário à Síria pode ter a ver com as negociações de reaproximação conduzidas por Dilma na recente visita à Washington. Acho difícil que o governo brasileiro se posicione ao lado da coalização da Rússia ou dos Estados Unidos, caso essa bipolaridade se confirme com mais força, porque isso faria alguns dos lados descontentes com o Brasil, e este é um cenário que o governo não pode se dar ao luxo de construir neste momento.

A recepção aos refugiados sírios no Brasil tem sido satisfatória?

O Brasil tem uma contradição na questão dos refugiados sírios. O país tem sido apontado como exemplo internacional por ter feito acordo com a ONU, facilitando as questões burocráticas para a entrada de refugiados sírios no país, garantindo mais direitos e menos problemas legais, por exemplo, para a obtenção de vistos de trabalho e do Registro Nacional de Estrangeiro. Por outro lado, os sírios que chegam aqui não têm assistência nenhuma. Não há qualquer apoio para garantir a inserção no mercado de trabalho, por exemplo, mesmo para profissionais qualificados que chegam nestas condições. Além de problemas com moradia, educação, o aprendizado do português, enfim, uma série de problemas. Cerca de 2 mil sírios estão refugiados hoje no Brasil. É um contingente pequeno, se compararmos com o todo, mas ainda assim é necessário que existam políticas públicas que facilitem a inserção destes refugiados em nossa sociedade. Em São Paulo, que é a cidade que mais tem recebido os refugiados, a inserção deles tem se dado mais a partir de iniciativas da sociedade civil e de organizações internacionais como a Acnur (Agência da ONU para Refugiados) do que do próprio Estado brasileiro.

Você considera que este atentado facilita a aprovação da lei antiterrorismo no Brasil?

É muito possível. Desde os ataques isso já está sendo pautado na imprensa com ênfase por conta das Olimpíadas. O Brasil não tem nenhuma relação com o conflito armado. Porém, as Olimpíadas já foram palco de atentados no passado, e o Brasil receberá delegações, como as francesas e russas, e sabemos que o Estado Islâmico poderia tentar fazer uma ação midiática. Por isso haverá pressa para aprovação de uma lei antiterror, até para dar uma resposta. Além disso, há uma pressão internacional, independente da direita brasileira. Entre os mais importantes países do mundo, o Brasil é o único que não tem uma lei antiterror clara e o país sempre foi cobrado nesse sentido. Esse grande evento e a agenda antiterror pós-atentados na França só vai fazer com que esta pressão aumente. O problema é que, pela maneira com que esta lei está sendo construída no Brasil, são os movimentos populares que criticam ou contestam o Estado que acabarão sofrendo as consequências, caso essa lei seja aprovada. Como já foi dito que é feito em relação aos movimentos de resistência popular árabe, a direita brasileira vai aproveitar a lei para vincular os movimentos sociais ao terrorismo, aumentando ainda mais a criminalização da luta social e a repressão. Não podemos vacilar em relação a isso, e devemos lutar pelo direito legítimo de organização e de luta popular, que nada tem a ver com o terrorismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário